A
escuta – verbal, não-verbal – é ferramenta de trabalho na Psicologia. É uma
técnica que se constrói a partir de uma teoria, uma metodologia, uma ética. Uma
paciente de Freud, Anna O., definiu a técnica de tratamento psicanalítico –
associação livre – como “a cura pela fala”.
A
arte da escuta, contudo, não deve se restringir apenas àqueles que se propõem a
trabalhar na área “psi”. Não deve se limitar apenas aos propósitos
terapêuticos. Ela, também, é muito importante na convivência com o outro e na
construção de relações positivas. Para gerir conflitos através do diálogo, da
mediação, da conciliação, é imprescindível saber escutar.
Saber
escutar implica disponibilidade pessoal, tolerância, aceitação.
Disponibilidade
porque oferecemos ao outro nossa escuta ativa, implicada com o que ele nos
fala. Oferece-se a escuta à fala do outro, consciente de que o outro se
constrói através de significantes diferentes, ou seja, a partir de referenciais
obtidos por sua trajetória pessoal.
Tolerância
é a capacidade de aceitar as diferenças, a pluralidade de opiniões.
Escutar
não é aconselhar. Não é dizer “olha, no seu lugar eu....” ou “eu acho
que....”. Quando damos conselhos, falamos de um lugar da verdade que
construímos para nós. A “minha verdade”, os “meus valores”, as “minhas
crenças”. Saber escutar envolve a humildade de não nos colocarmos como “donos
da verdade”, mas de agirmos como meros coadjuvantes, facilitadores do encontro
do outro com suas próprias respostas.
Acho
fantástico um texto de Rubens Alves, “Escultatório”:
“Sempre
vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória.
Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em
oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é
complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para
ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“.
Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí
a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos
e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo
que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que
está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores
entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São
misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade
de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as
flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito
tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma
delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga,
nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando
conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento,
mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se
literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi
inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...)
Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido
hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a
enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente
de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a
admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente,
ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A
segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais
terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio
o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É
preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente
não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem
misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que
ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser
complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No
fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg -
citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa
arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um
velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela
revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num
programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias.
Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos
os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas,
antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio,
como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir.
Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.
Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em
silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto.
Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um
grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que
julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos.
Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender
o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades.
Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que
você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando
você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“
Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já
pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar
sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O
que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando
cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.
Há grupos
religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma
semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali
estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas
construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber.
Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me
deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa
com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é
preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas
logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da
liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde.
Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de
madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali
colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado
por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de
Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no
centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete.
Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito
frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso
que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e
rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas
macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram.
Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém
tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém
que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco
minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi
que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se
alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não
basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E
aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não
ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia
a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há
palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A
música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio,
abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de
Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma
catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica
fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez,
essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala.
Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a
melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a
beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a
beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente
se juntam num contraponto...”
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